domingo, 14 de junho de 2015

Verniz e Histótia






   Compatirá I'tardanza del violino che è stato la causa per la vernice per le gran Crepate che il sole non le facia aprire.



       Este trecho extraído de uma carta escrita por Stradivari datada de 12 de agosto de  1708 tem recebido varias interpretações ao longo dos últimos dois séculos, e hoje ainda há duvidas sobre o seu significado. No tratado escrito pelos irmãos Hill o trecho tem a seguinte tradução:

" Peço que me perdoe o atraso com o violino, ocasionado pelo envernizamento das grandes rachaduras, de modo que o sol não as faça abrir novamente".

No livro de Sacconi (il secreti di Stradivari, 1979), a interpretação é a de que o atraso na entrega do violino se dera "por causa do verniz, que antes de secar precisa ser exposto ao sol forte, para que amoleça e se espalhe uniformemente, de tal maneira que as marcas de pincel não apareçam".

     Entretanto, nenhuma dessas interpretações explicam completamente as razões para o atraso. Dois trabalhos importantes de famosos artistas italianos,"il libor dell'arte"(1437) de Cennino Cennini e "le vite de più eccellenti architetti, pittori, et sculptore italiani" (1550) de Giorgio Vasari permitem traçar paralelos interessantes entre pintura e liuteria.
      Qualquer pessoa familiarizada com técnicas de pintura sabe que o verniz final protege e dá brilho e profundidade às cores. As pinturas em têmpera sobre madeira mencionadas com frequência por Cennini e Vasari tinham de ser envernizadas senão as tintas feitas com ovo ou cola teriam uma aparência opaca.
       A primeira analogia entre a carta de Stradivari e o livro de Cennini está no uso da luz solar. No capítulo intitulado "o tempo e o método para envernizar a pintura", ele afirma:

" Tome o verniz liquido mais transparente e brilhante. Coloque sua pintura no sol, limpe-a cuidadosamente e certifique-se se não há vento.quando a pintura e o verniz estiverem aquecidos pelo sol, espalhe o verniz com a mão. se deseja-se que o verniz seque sem ajuda do sol, ferva-o antes de usar, de tal modo que a pintura não seja danificada".

        É fato bem conhecido que alguns vernizes podem resistir a altas temperaturas; aliás eles muitas vezes são preparados a fogo. isso não se aplica à madeira, que pode empenar ou rachar com altas temperaturas ( basta  observar o que acontece com aquele violino esquecido no porta-malas de um carro ao longo de um dia).

      Um segundo paralelo aparece no capitulo sobre Antonello de Messina do livro de Vasari, no qual ele narra:

"Um dia Giovanni da Brugia (Jan Van Eick) pintou com grande esforço uma peça de altar e então envernizou-a, como era o costume naquela época. Depois a pintura foi exposta ao sol para secar, mas a madeira rachou. a causa pode ter sido o calor, ou má colagem, ou talvez a madeira verde".

     É interessante que o uso do sol no tratamento de vernizes era uma pratica bem estabelecida. Os vernizes usados naquele tempo eram feitos de resinas e óleos que eram fervidos e misturados em adtivos químicos, como pode ser verificado na seguinte passagem:

"Ele finalmente descobriu que a combinação de óleo de linho com óleo de nozes era a mais secativa de todas. Estes óleos eram fervidos juntamente com outras substancias a fim de obter o verniz que ele queria".

      À luz dessas afirmações pode ser deduzido que as "crepe" (rachaduras) mencionadas na carta de Stradivari se referiam não ao verniz mas sim à madeira do instrumento. A passagem pode ser reinterpretada como se segue:

"Peço que me perdoe o atraso na entrega do violino, causado pelo verniz (que necessita de luz solar para secar). Nós devemos ter cuidado para que o instrumento não rache devido ao calor".

Em Cremona a temperatura em agosto pode subir bem além dos 30º C.

      A importância da luz solar é também evidenciada na correspondência entre o padre Fulgentius Micanzio de Veneza e o astrônomo Gallileo, em nome do qual Micazio havia encomendado um violino de Cremona, numa carta de 1683, Micazio explica que "um instrumento bem feito não pode ser levado à perfeição sem o forte calor do sol"; e em outra, ele menciona que o processo levaria dois dias.

     De tudo isso fica claro que os antigos "liutai" e pintores empregavam vernizes a óleo, não existe, entretanto, um verniz "ideal". Stradivari variava frequentemente seu acabamento dependendo do gosto do omento ou dos prazos de entrega, e não se pode dizer que seu verniz é "melhor" que o de um Amati bem preservado. contudo, os vernizes utilizados pelos antigos mestres têm algumas características em comum.

    A questão do por que os vernizes antigos são sensíveis ao álcool, embora tenham as características de um verniz a óleo (leveza de textura, combinada com uma coloração brilhante porém discreta, Hill 1902", permanece aberta. Óleo de linho uma vez seco, não é solúvel em álcool. entretanto, tratando-se o óleo com  certas resinas (por exemplo, copal, masstique, dammar ou colofonia) pode-se obter um verniz sensível ao calor e ao álcool. Além disso, a exposição do óleo de linho ao sol inicia um processo de decomposição, tornando-o solúvel. O tempo de secagem pode variar de um dia a um máximo de dois dias, se a camada de verniz foi exposta num ambiente bem arejado e iluminado a uma temperatura em torno de 25ºC. É preciso mencionar que a colofônia, uma resina de alta acidez, precisa ser tratada com cal, O mesmo pode ser aplicado ao óleo de linho, que no passado era fervido com cal para torna-lo mais secativo.
 
      As resinas são ingredientes fundamentais nos vernizes à óleo, e é possível que no passado o próprio termo "verniz" tenha se derivado do nome de uma resina. Uma interpretação seria de que o termo vem do latim (por volta do século XIII) na forma "veronix - venoricis - veronice". Alguns dicionários de etimologia relacionam o termo "vernice" à palavra feminina de origem Macedônica "Bernike" ( a palavra para verniz em grego é "berniki"). Este foi o nome de algumas rainhas egípcias, entre as quais Berenice II ( sec. III A.C.) a qual deu seu nome à uma cidade em cirenaica (hoje Banghazi), um porto mediterrâneo a partir do qual uma variedade de produtos preciosos era exportada. Era comum no passado que materiais fossem chamados pelo nome do porto por onde eram embarcadas - colofonia por exemplo, obteve seu nome a partir da cidade lídia de Colophon. Portanto é possível que Berenice deu seu nome a uma forma de resina, "vernice". No curso do tempo, o termo assumiu o significado mais geral que tem hoje.

    Há outros exemplos de como, através de como, os nomes das resinas associadas com a fabricação de vernizes tiveram seus significados alterados. Sandaraca por exemplo, vem do grego " sandarakè", ao qual por sua vez tem origem assíria "candra raga"(tão brilhante como a lua). refere-se aqui ao reagar (cennini chama-o "risalgallo"), um bisulfito de arsênio amarelo-alaranjado usado em pinturas desde tempos rmotos e chamado de "sandaracha". Por outro lado Aristóteles na sua "história dos animais" identifica sandaraca como sendo uma goma derivada das coméias (própolis).
Hoje me dia sandaraca pode ser adquirida tanto do junipero quanto da thuja articulata. O termo copal deriva-se do espanhol (asteca; copalli) significando copaíba (arvore do caribe kopaiba). O nome latino é copaifera officinallis, e no curso do tempo, resinas do mundo inteiro passaram a ser conhecidas por estes nomes.

    Conclui-se possivelmente o termo verniz teve um significado específico até o século XV, embora ainda não seja claro se ele se referia à sandaraca, goma junipero, mastique ou alguma outra substancia. Contudo, qualquer umas dessas resinas, quando misturada com óleo de linho, fornecem vernizes de alta qualidade para violinos. Não houve nenhum "segredo": tão somente a habilidade, bom gosto, personalidade artística do liutaio.